segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Fotossíntese

Por maior que seja minha alegria
Não consigo dispensar a melancolia
de um cigarro [bem tragado
No parapeito da minha janela

Engulo a fumaça
Baforo minha tristeza
O vento frio carrega as cinzas
Espalha-as na cidade quase
                                         adormecida]

Respiro as tristezas de outros
Talvez tão solitários
Talvez tão simplórios
Quanto o meu cigarro infeliz

Odeio o amargo da fumaça
Na minha boca
Mas gosto de beijar bocas
Contaminadas pelo dissabor do fumar

                                                    [Viver é uma eterna fotossíntese de nicotina]

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Pixaim

Nossa, que cabelo duro! Ele é assim, armado mesmo? Parece bombril... Aposto que pente nenhum deve passar aí. Deve ser mó difícil cuidar, né? Além do que, nem todo lugar aceita alguém que vá trabalhar desse jeito. Parece que você não se arruma! Hum, já sei: por que você não faz chapinha, assim, só pra ver como é? Se não gostar, lava.

Ah, fez, né? Falei, todo mundo ia elogiar. Ficou leve, prático, bem diferente de como era antes. Dava um trabalhão pentear aquilo tudo, né? Mas agora vai ser fácil. E olha como é rápido se arrumar agora. 

Complicado fazer chapinha todo dia, né? Eu sei. Fica meio artificial também, as pessoas reparam. Então, por que você não faz o seguinte: tem um salão na rua da minha casa e eles fazem escova progressiva bem baratinho. O quê, formol? Relaxa, é tão pouco que mal dá pra sentir o cheiro. Vai deixar seu cabelo lisinho, lisinho e acabar com essa dor de cabeça.

Putz, é caro, né? Realmente, mas dura 3 meses. O quê, seu cabelo tá caindo? É foda, mas mulher tem que sofrer pra ficar bonita, mais feminina, sabe. E, fica tranquila, tem tanto aí que repõe rapidinho o que caiu. Além do mais, vale a pena, né? Olha como as pessoas prestam mais atenção em você. Você tá tão mais bonita! Teu cabelo agora é bom.

Identidade? Que mané identidade! Cê acha que ter cabelo ruim te torna mais negra? Mal-agradecida. Tento ajudar e cê me retribui desse jeito, me chamando de racista. O racismo já acabou no Brasil, minha filha! Aqui todo mundo tem oportunidade igual, é só ir atrás do seu. E, ó, não corta seu cabelo curtinho pra ele nascer ruim de novo, tá? Vai parecer uma sapata.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Do sentir

"Até pouco tempo atrás, eu achava que ser era fácil, que já nascíamos semente do que éramos e do que viríamos a ser. Que engano! Cada um é vários e todos os vários são muitos. Todos somos uma colcha de retalhos de eus encaixados que formam cada um. Nas individualidades construídas, cada qual à sua maneira, nos conhecemos e conhecemos outrem. E quantas são as combinações possíveis! Dá pra ser astronauta, bailarina, bicho, criança, pedra... Cara, a gente pode ser o que quiser....! É aí que reside toda a inconstância e todo o encantamento do ser e de ser humano.

Não lembro como caí naquele nó de gente. Depois de uns segundos de náusea, recobrei a consciência e me dei conta: ninguém era alguém ali. Todos éramos nada, todos éramos tudo! Não havia gênero, órgão sexual, suspiro e expressão que nos tirasse a serenidade: éramos maiores que aquilo! Falávamos dos nossos sentires como se fosse um truque e um mágico estivesse tirando-os como lenços de dentro de nossas entranhas. Chorávamos sem constrangimentos, vomitávamos a nós mesmos, nos criávamos personagens, sujávamos e limpávamos a sala. Tudo na primeira pessoa do plural. Não há Eu, não há Você. Somos todos,  somos o mundo, somos animais sem nome-idade-cpf-carteira-de-trabalho. Somos livres nos limites de nossos seres, o tempo é uma mentira, o espaço é relativo! Eu sou o meu deus e Deus ri da minha ingenuidade. Eu posso abraçar o mundo, posso colocá-lo entre as minhas pernas, posso rir do grande amor.   Estou louco no auge da minha lucidez!

Mas agora acabou...

Fechamos os olhos, deitamos no chão. Fechei. Deitei. Quando eu acordei, estava sozinho. Pequeno e vulnerável diante da imensidão que antes me tomara. Meu corpo jamais parecera tão insólito, meu gosto era insípido. Eu voltara ao meu estado natural de ser existente com a minha ficha de identificação pendurada no pescoço, minhas oito horas de trabalho por dia. Aquela multidão se tornou vários ninguéns, que eu já não mais dispensava atenção ou ânimo. O que acontecera comigo? Onde eu estive? Quem eu fui e no que eu me tornei? 

Não importa mais. De tanto viver, eu escolhi não saber. Agora eu só quero o sentir."


[Protocolo do teatro -  não faço ideia da data]

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Restos

Tinha mania de guardar coisas. Coisas? Tralhas. Restos. Pedaços que eram partes de seu inteiro: lembravam o Eu de outrora, tão menos que o Eu de agora, tão inexperiente diante do Eu futuro, promissor e sábio. Viveu anos dessas retrospectivas e viagens solitárias ao passado; chegava do trabalho e abria as caixas – enormes! – completamente preenchidas por fotografias, cartas e papéis de toda sorte. Fazia um café, punha os discos – de uma época que ainda valia a pena comprar discos – e dançava com suas memórias. Era o colegial, a faculdade, os amigos que iam e vinham, os namorados ao longo dos anos. Seu cotidiano era uma verdadeira colcha de retalhos, repleta por pessoas em doses homeopáticas. Nenhum de seus amigos, namorados ou conhecidos durou mais do que o espaço a ser preenchido pela lembrança. Não havia tempo de saber se a memória final seria boa ou ruim.

Seu redemoinho interior sugava e expelia pedaços da sua vida mais rápido do que sua mente poderia processar. Era um Eu tão instável e mutilado que tornava-se impossível manter algo, por menor que fosse. Quando dava por si, já substituíra o elemento que lhe faltava por outro. Valor de uso ou troca? Não importava. Aprendera a conviver com a nostalgia do que não foi, dos delírios de uma imaginação que nunca aprendera a dar lugar à realidade dos fatos; a imagem de uma presença representou mais do que seu conteúdo.

Tirava fotos, pra lembrar depois; do quê, meu Deus? Era tudo tão superficial que, ao olhá-las, qualquer sentimento se convertia a um vazio sem fim. O que sentira naquele momento? O que aquele sorriso representava? O que gerou aquele encontro? Como saber! Ela tinha fotos, não vidas; antes de sentir, ela apenas visualizava – e era uma imagem desfocada, pouco nítida, cujo significado durava segundos e esvaía-se ao menor pensar.

Naquele suposto futuro, a tal sabedoria esperada não viera. Na sua instabilidade, quis ser ser outras sendo ela mesma. O seu Eu de ontem e hoje era o mesmo: inerte e perdido.

No fim, ela guardava só partes do mundo. De si e de tantos outros que, espalhados, lhe deixaram apenas um holograma pra servir de recordação. Partes? Restos. Não se pode ter um pedaço se nunca teve um inteiro.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

(Nosso)

Sabe, escrever sobre você nunca foi fácil.

“Pára de fantasiar, isso é longe demais da tua realidade, sai dessa!”. Não sei porque discutia tanto comigo mesma. Pior, sei que o faço de teimosia mesmo – você sabe melhor que todo mundo –, por ter o péssimo ato de entrar de cabeça em tudo o que me encanta assim, de primeira vista, e que me dá aquele fiapo de alegria sincera, daquelas que se tornam constantes por dias a fio.

Desde o começo, era difícil compreender aquela torrente de sentires novos, que percorriam meu cérebro a 300km/h e, principalmente, me deixavam completamente desarmada. Eu, que sempre achava que podia “diagnosticar” tudo o que sentia e ter uma palavra sobre cada pessoa, momento ou ocasião, me encontrava diante de um enigma, dum todo que eu conhecia muito menos do que gostaria. Ainda acho que o medo seja o primeiro instinto verdadeiro, seguido pela curiosidade e pelo maravilhamento. E quanto mais eu pensava “caralho, o que tá acontecendo comigo”, maior era a minha fascinação sobre o seu Eu e a sua história.

Paralelo a esse magnetismo que até então eu desconhecia, vinha esse seu entrar na minha, numa profundidade que eu jamais havia sentido. Em um espaço de tempo no qual não sei determinar, você se tornou essencial no meu viver. Mais: arrisco dizer que você se tornou parte de mim, um pedaço tão fundamental como qualquer outro. Só assim eu poderia explicar o vazio imenso que me toma a cada vez que saio de perto de você.

Talvez seja por isso que eu não consiga te (d)escrever. Você roubou todas as minhas palavras naquela tarde na Consolação. Agora, minhas letras são todas suas.